A evolução do Direito Administrativo é percebida pelo direcionamento e preocupação ao incorporar estudo de mecanismos jurídicos que buscam ampliar possibilidades de gestão participativa, democrática e inclusiva. Nesse sentido, as compras públicas protagonizam como um artefato de instituto jurídico incrementado pela finalidade de realizar o desenvolvimento nacional sustentável, previsto expressamente no art. 3° da Lei nº 8.666/93 e como princípio no art. 5° da Lei Federal n° 14.133/2021. O objetivo não será apenas a negociação entre particular e Administração Pública para a busca da proposta mais vantajosa, economicamente, mas sim a concretização de políticas públicas com reflexos perante toda sociedade.
Políticas públicas são decisões e ações tomadas pelo Estado com o objetivo de tentar solucionar ou pelo menos minimizar problemas ou atender demandas da sociedade em geral. Elas são implementadas por políticas de governo materializadas por meio de leis, regulamentos e projetos, que visam promover o bem-estar social, garantir direitos, melhorar a qualidade de vida dos cidadãos e alcançar objetivo de interesse público.
A autora Maria Paula Dallari Bucci traz o conceito de política pública como sendo:
“o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.”
Assim, o objetivo das políticas públicas é promover a equidade social, reduzir desigualdades e garantir o acesso igualitário a serviços e oportunidades para todos os cidadãos, contribuindo para o desenvolvimento e fortalecimento da democracia.
Sob o contexto de aplicação de políticas públicas voltadas às licitações é imprescindível destacar o poder dever da Administração Pública em fomentar que as empresas licitantes exerçam o seu papel perante a responsabilidade social, a obtenção de propostas de serviços e fornecimento de bens e materiais sob apenas o critério do “menor preço” já foi ultrapassado.
De acordo com uma pesquisa realizada pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, Organização Não Governamental (ONG) que atua na promoção de ações de advocacy em direitos humanos e na luta por reformas na política nacional sobre drogas, apontou que 45% dos egressos do sistema prisional enfrentam dificuldades no acesso ao trabalho.
Desta forma, o Conselho Nacional de Justiça instituiu a “Política Começar de Novo” através da Resolução CNJ Nº 96, de 27 de outubro de 2009, cujo objetivo é “sensibilização de órgãos públicos e da sociedade civil para que forneçam postos de trabalho e cursos de capacitação profissional para presos e egressos do sistema carcerário”.
A ideia do projeto foi fomentar o Poder Judiciário para implementar “um conjunto de ações educativas, de capacitação profissional e de reinserção no mercado de trabalho para pessoas egressas do sistema prisional” (Resolução 96, Art. 2º), através da celebração de parcerias com os Tribunais de Justiça e criando um “Portal de Oportunidades” no sítio eletrôncio do CNJ, assim o interesse foi o cadastramento das entidades interessadas, dos cursos disponibilizados, das vagas oferecidas por empresas públicas ou privadas e dos comitês gestores do projeto em cada Estado.
No âmbito do Estado do Maranhão, vale mencionar a Lei nº 10.182/2014, que implementa a nível estadual a Política Estadual “Começar de Novo”, que dispõe sobre a obrigatoriedade da reserva das vagas para admissão de detentos, bem como de egressos do sistema penitenciário nas contratações de obras e serviços pelo Estado do Maranhão.
Além disso, foi editado o Decreto Estadual nº 37.806/2022, que regulamenta a Política Estadual “Começar de Novo”. Os beneficiários da Política Começar de Novo são as pessoas privadas de liberdade em regime aberto e em regime semiaberto e egressas do sistema penitenciário que estejam em livramento condicional ou em suspensão condicional de pena, bem como os que já tenham cumprido a pena, incluindo os beneficiados por indulto.
Em vista disso, em 26 de outubro de 2017, a Lei nº 8.666/93, sofreu alteração pela Lei nº 13.500/2017, que introduziu o §5º no art. 40 da primeira lei citada, o qual dispõe sobre a possibilidade de a Administração Pública exigir, nos editais de licitação para a contratação de serviços de mão de obra, que as empresas contratadas pelo Poder Público tivessem um mínimo de trabalhadores oriundos ou egressos do sistema prisional, na forma do decreto regulamentador.
Além disso, em 1º de abril de 2021, foi publicada a Lei nº 14.133, que estatuiu no art. 25, §9º, inciso II que o edital poderá, na forma disposta em regulamento, exigir que percentual mínimo de mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por oriundos ou egressos do sistema prisional.
Entre os principais benefícios da parceria estão a economia para empresa e ofício às pessoas privadas de liberdade. Isto porque, no aspecto econômico, a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) oferece benefícios a quem contrata a mão de obra prisional, como a isenção de encargos trabalhistas, a saber: férias, 13º salário, recolhimentos ao FGTS, repouso semanal remunerado, contribuição previdenciária, dentre outros.
Outrossim, outro aspecto a ser mencionado, é a situação das mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil. Em pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha e Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que, a cada minuto, 35 mulheres são agredidas física ou verbalmente no Brasil e que 28,9%, o equivalente a 18,6 milhões de mulheres, relatam ter sido vítima de algum tipo de violência ou agressão, o maior percentual da série histórica do levantamento. São números preocupantes e crescentes no país, sendo a dependência socioeconômica dos agressores um dos principais fatores que dificulta o rompimento do ciclo da violência. Por consequência, as agressões restringem o desenvolvimento das potencialidades da mulher, inclusive a sua inserção e produtividade no mercado de trabalho.
Diante dessa situação, o art. 25, §9°, inciso I, da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos prevê a possibilidade de o edital de licitação exigir percentual mínimo de mulheres vítimas de violência doméstica na mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação. O art. 60, III, por sua vez, estabelece que as ações de equidade entre mulheres e homens no ambiente de trabalho podem ser consideradas critério de desempate em licitações, no âmbito da Administração Pública Federal Direta, Autárquica e Fundacional. Desse modo, a Lei 14.133/2021 implementa ações afirmativas no combate à discriminação e à igualdade.
Ademais, buscando regulamentar a Lei 14.133/2021, foi publicado em 08/03/2023 o Decreto 11.430/2023, o qual, em síntese, determina que os editais de licitação e avisos de contratação direta para serviços contínuos em regime de dedicação exclusiva de mão de obra, com no mínimo 25 colaboradores, devam prever o emprego de mão de obra constituída por mulheres vítimas de violência doméstica, em percentual não inferior a 8% das vagas, o qual deve ser mantido durante toda a execução do contrato. Aliás, é imprescindível citar que para o preenchimento das vagas devem ser priorizadas mulheres pretas e pardas, observando a proporção dessa solução em cada unidade federativa onde ocorrer a prestação do serviço. Destaca-se, ainda, que são incluídas expressamente as mulheres trans, travestis e outras possibilidades do gênero feminino (nos termos do art. 5° da Lei Maria da Penha).
No Estado do Maranhão a atuação objetivando a mitigação dos efeitos decorrentes da violência doméstica contra a mulher tramita na Assembleia Legislativa o Projeto de Lei nº 106/2023, que visa disponibilizar, no mínimo, 2% (dois por cento) das vagas nos editais de licitação que visem contratar empresa para prestar serviço continuado e terceirizado na Administração Pública Direta, Autárquica ou Fundacional.
Por fim, mas não menos importante, vale mencionar as dificuldades enfrentadas para a inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. De acordo com dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de participação das pessoas com deficiência no mercado de trabalho é de 28,3%, menos da metade do índice registrado entre as pessoas sem deficiência, que é de 66,3%. A diferença entre eles é um indicativo dos desafios enfrentados pelas pessoas com deficiência para acesso ao trabalho formal.
Nesse entendimento, com base nas disposições da Lei 8.213/91, que em seu artigo 91, versa sobre a obrigatoriedade de contratação de pessoas com deficiência ou reabilitados do INSS, foi inserida na Lei Federal 8.666/93 a possibilidade da Administração Pública dar preferência (regra de desempate) a contratação de empresas que “comprovem cumprimento de reserva de vagas prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação.” (artigo 3º, §2°, V, da Lei 8.666/93).
De forma mais aprofundada, a Nova Lei de Licitações também se preocupou em prever a reserva de vagas para pessoas com deficiência e reabilitados da Previdência Social. Enquanto a Lei 8.666/93 utiliza o cumprimento de reserva de vagas como critério de desempate, a Nova Lei determina que, na fase de habilitação, a licitante deverá apresentar declaração de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social. Logo, se na Lei Federal 8.666/1993 tratava-se de questão secundária, na Lei Federal 14.133/2021, o tema passa a ser requisito formal de habilitação no procedimento licitatório (art. 63, IV).
Neste diapasão, a professora Christiane Stroppa em sua dissertação de mestrado destaca a importância para a função social da licitação alertando que:
“Ora, atende plenamente a ideia de supremacia do interesse público a transformação do instituto da licitação em uma das atividades estatais mais relevantes, haja vista a possibilidade real de transformação econômica e social de um país.”
Os esforços deverão destinados, como Caroline Rodrigues Silva destaca, para a busca do equilíbrio social, com redução do nível de pobreza, promovendo o bem-estar social, os direitos fundamentais sociais, a inclusão e responsabilidade social, o empoderamento e inclusão de minorias, o incremento da equidade intra e intergeracional e a aptidão para desenvolvimento das potencialidades humanas com objetivo também da distribuição equitativa das potencialidades econômica nacional.
Em síntese, desde a Lei n° 8.666/93 o ordenamento já tinha a preocupação com o atingimento da função social através das diversas políticas públicas apresentadas como exemplo neste texto, mas culminam na sua efetivação através da Nova Lei de Licitações (Lei n° 14.133/2021) com mecanismos de governanças, principalmente através da efetivação da responsabilidade social, para alcance do Desenvolvimento Nacional Sustentável, destacando o equilíbrio entre o aspecto social e o econômico.
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ANDRÉ LUCAS PINTO COELHO
Advogado, OAB/MA 12.765
GUSTAVO KEWSEN DA SILVA ROCHA
Estagiário
REFERÊNCIAS
BUCCI, Maria Paula Dallari. (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 39.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução 96, de 27 de outubro de 2009. Dispõe sobre o Projeto Começar de Novo no âmbito do Poder Judiciário, institui o Portal de Oportunidades e dá outras providências. Brasília: CNJ, 2009.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional Começar de Novo e Escritório Social: políticas de convergência. Brasília: CNJ 2021. Acesso em 22 de junho 2023.
FRANCO, Caroline da Rocha; GUIMARÃES, Edgar. Controle das políticas públicas por meio das licitações. Acesso em: 22 de junho de 2023.
LULA, Assecom/Dep. Carlos. Carlos Lula propõe projeto que prevê vagas de emprego para vítimas de violência doméstica. 2023. Acesso em: 19 junho 2023.
MENDES, Juliana. TJMA regulamenta Política para reinserção de egressos(as) no mercado. 2022. Acesso em: 19 junho 2023.
RÉGNIER, Gabriel Medeiros. Os benefícios econômicos e sociais da alternativa da mão-de-obra carcerária. Acesso em: 19 junho 2023.